segunda-feira, 22 de abril de 2013

A LUZ

Não há como
suspender o outono
e mergulhar no inverno,
como se este
daquele fosse dono.

Apesar de alternativo,
com esse "ou" indeciso
que lhe abre o rosto e a alma,
a cada nuance de fora
corresponde outra de dentro:
mais matrizes que matizes,
que uma lambendo a outra,
ambas domam o rebento.

Além desse madurar,
os gelos têm de compor -
devagar -,
seus complexos cristais:
em cada molécula tensa,
abrigar paixões suspensas,
ilusões que já não ardem
- esfriadas a golpes de tempo
ou de verdade -,
e o germe do fogo infante
que inda não se garante,
mas não pode fenecer:
a primavera
espera.

Não há como
suspender o outono
e cair direto nas certezas
do inverno
(que sabemos quebradiças),
cuja luz
não nos ilude.

quarta-feira, 27 de março de 2013


HISTORINHA DE AMOR 
Era uma vez um hipopótamo que sonhava ser papagaio.
Era uma vez um papagaio que sonhava ser hipopótamo.
Quando se encontraram no sonho, perceberam que cada um não podia ser o outro, mas que podiam ficar perto, assim o hipopótamo levaria o papagaio pra tomar banho de rio e o papagaio levaria o hipopótamo para voar. Foram felizes para sempre.

UM DIA VISTO DE FORA

Tem dias 
em que nem pedras há 
no meio do caminho.

São dias lisos, 
despelados, 
despetalados 
como um resto de flor na haste,
um duro rubi sem engaste,
um traste num canto de muro.

São dias de alma branca –
não o branco da pureza,
mas o branco duro do papel não escrito,
que só serve para embrulhar.

Dias agudos,
que expulsam de si todos os ninhos.

Tem dias que,
não obstante serem convexos,
vazam
no calendário
covas
(não refúgios)
para onde
escoa
a vida.

sábado, 16 de março de 2013

TRÊS POEMAS DE CIRCUNSTÂNCIA


MOÇA, ME OUÇA

A noite
Pode ser um uivo de coiote
Ou um foxtrote:
Depende da cava
Do teu decote.


ORAÇĀO 

Nāo deixar nada
Pra resolver amanhā. 

Sentir-se como pele
Envolta por densa lā
Num inverno bestial.

Deixar deperto e atento
Somente o fero animal.

Pensar em nada:
Esquecer a madrugada,
Que chega sempre - é fatal-
Interlúdio entre o sonho
E a corrosiva razāo,
Sede de todo sim
Contraposto sempre a um "nāo",
Quando o que desejamos
É tāo somente
Respirar.

(Boa noite a quem vira bicho, se for preciso)




SE ESTA RUA FOSSE MINHA...

Ah, se pudéssemos brincar
com nossas aflições
no meio da nossa rua!
Nossas casas numeradas
mudariam de fachada
perdendo a feição ordenada...
A casa verde
seria a "da moça que acredita".
A casa amarela,
seria a "da moça que medita".
A casa de portão rosa,
a "da velhinha maldita
que vive inventando prosa”.
A casa de telha estragada,
a "da tiazinha safada”.
.........................................
E no meio-fio,
filho de todo mundo,
o sujo cachorro felpudo
com doce olhar de veludo,
que dispensa toda casa
para preservar as asas
que podem servir de teto
a essas almas inchadas
de represados afetos.

(Em tempos de papa reaça
e de pastor-ameaça,
temos de, pelo menos,
fazer chalaças vadias
com as palavras macias).
Boa tarde.