sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O foco

Vocês já notaram que em qualquer ambiente de trabalho agora o termo da moda é "foco"?
- Não podemos perder o foco no comercial, Johan!
- Beatriz, não perca o foco nas calcinhas: é o grosso da nossa renda (sem trocadilhos).
- Ô Manuel, olha lá o foco nos tomates, filho, que nossa banca não vende ricota!
- Porra, Paulo, você precisa manter o foco, caralho! Você vende PCs, não absorvente!

Logo, logo, a coisa chega no ambiente doméstico:
- Pai, dá pro senhor manter o foco na conversa? Faço ou não o aborto? Já vai pro 4o. mês.
- Mãe, dá pra você manter o foco nos banheiros e comprar papel higiênico? Não agüento mais ralar meu cu com saquinho de padaria, pô!
- Filho, mantém o foco no pinto, se não você vira veado! Com E.
- Nossa, Marcelo, aquela sua irmã, hein! Só foca homem rico. Uma putinha disfarçada, hein amor...
Eu quero que os focos se lixem e peço: completem a rima:

- Milu, mantenha o foco no....

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ai de ti...

Enfileiradas,
as árvores
inspiram gás carbônico
e expiram oxigênio.

Entrincheirados,
os homens
inspiram oxigênio
e expiram ódio.

Encurralado,
Deus
se pergunta o motivo
da sua criação.
Em solidão cósmica,
conversa consigo mesmo
e planeja a hecatombe.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Para minha sobrinha-neta

(Este texto eu escrevi pra filha de um casal amigo, em 2004. Agora, virei tio-avô e me lembrei dele. Aproveito tudo, porque crianças despertam em mim sempre a mesma mistura de pena com ternura),

Para uma criança num berço

Daqui a pouco esta criança estará dormindo, envolta nos seus azuis e rosa.
Não ligará mais para o lacinho da cabeça, para as florzinhas da roupa, para as bolinhas do pijama. Também se esquecerá dos peixes que, na fronha, navegam sob sua cabeça, trazendo sonhos de mar. Dormirá em azul e rosa, como uma esperança respirante.

Não acredito num Deus, minha menininha, mas que os deuses te protejam.
Não acredito num Diabo, minha menininha, mas que diabo, você precisava ser tão meiga assim?
Não acredito em fantasmas, minha menininha, mas se eles existirem, afaste-os das nossas vidas com seu bocejar tão doce.
Não acredito em previsões, minha menininha, mas como não prever um futuro suave para você?
Não acredito em horóscopo, minha menininha, mas como não imaginar que você inaugurou uma estrela prateada no céu do seu signo?
Não acredito na justiça, menininha, mas como não imaginar que sua fragilidade comoveria o mais sério dos juízes e amoleceria o coração do mais feroz júri?
Não acredito na cura para todas as doenças da alma, menininha, mas como não imaginar que esse seu bocejo faria milagres para quem sente alguma dor?

Psiu, menininha, antes de dormir dá um sorriso pra nós, vai.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Viver de metáforas?

Era linda. E sabia. E era arrogante.
Todos os homens da cidade pequena arrastavam-se a seus pés, como na música do Roberto Carlos, aquela.

Escolhia sempre as colegas mais feinhas pra anunciar:
- Estou nas nuvens! Amando demais...
E desfilava namorados pra cima e pra baixo, pra baixo e pra cima, sempre repetindo:
- Estou nas nuvens! Amando demais....
Numa tarde de verão, o sol esquentou demais, a pequena cidade litorânea, atormentando a todos: lindas e feias, cegos e videntes, brancos e pretos, ocidentais e orientais, altos e baixos, gordos e magros, doentes e sãos....
Menos ela, que continuava repetindo:
- Estou nas nuvens, amando demais... Nem ligo pro calor... Estou nas nuvens....
À noite, o sufoco era geral. Até que despencou uma chuva muito, muito forte.
Como ela vivia nas nuvens, foi levada para o mar, junto com as nuvens que viraram chuva.

Não, não se transformou em sereia.
Voltou um dia em forma de onda e foi cortada ao meio pelo mais belo e melhor surfista da cidade, um de seus ex-namorados.

Morreu na praia, literalmente.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A estrela Dalva

Quando eu era adolescente, rachava o bico de rir da minha mãe se emocionando com a Dalva de Oliveira na Rádio Mayrink Veiga e depois na Nacional. E aquelas capas todas da Revista do Rádio... Achava de uma cafonice atroz tudo aquilo.
Afinal, estávamos vivendo a fase do canto minimalista da bossa-nova, embora Tom Jobim já compusesse pra Dolores Duran e fizesse arranjos pra Dalva. Ah, e no interior não havia televisão...

Mas o bom mesmo era ouvir aquela vozinha minúscula da Nara Leão, a batida novíssima do João Gilberto (que hoje eu acho um saco)e toda aquela gente nova surgindo como por milagre, revirando tudo.

Dalva era o passado, a gritaria. Com ela, Emilinha, Marlene, Nélson Gonçalves, Carmem Costa, Linda e Dircinha Batista... e o Chico Viola, cuja morte parou o Brasil. Um bando de gente que gostava de abrir os braços e gritar e exibir uma potência vocal totalmente fora de propósito pra gente.

Maysa era a mais aceitável, pela voz aveludada e discreta e o gosto sofisticadíssimo. E Sílvia Telles, que desbancou tanta garganta de ouro com uma vozinha de quase nada, assim como Claudete Soares.

No meio disso tudo, um casal discretíssimo, politizadíssimo: Nora Ney e Jorge Goulart, os que mais sofreram com a "invasão" da Rádio Nacional pela ditadura.
Nora Ney era a fossa ambulante, versão nacional de Juliette Greco, a musa do existencialismo.

E Dalva era uma Piaf. Mas não gostávamos de Piaf também. Era uma voz nos longes da Europa, que na época era muito mais longe que hoje. Cheguei a vê-la ao vivo, numa casa noturna de SP, quando ela foi relançada, com "Màscara Negra" e gravou algumas músicas do Chico Buarque.

A bossa-nova se firmou, tirou o samba-canção de moda, moeu uma pancada de gente...
Depois, a retomada das músicas de Dalva no shows de Bethânia...
Com a idade, aprendi a escutar Dalva extirpando um pouco a overdose do sotaque, a forma "antiga" de pronunciar as palavras... A cafonice das letras do Herivelto passaram a ser vistas com outros olhos.

E hoje me pego aqui ouvindo Dalva e vendo uma minissérie sobre a vida dela.
Já tinha visto, no teagtro, "A estrela Dalva", com Marília Pera, que musicalmente é muito superior à série.

Hoje consigo entender que a Dalva tem uma voz de cristal. E gosto.
Acho que mudamos: o Natal e eu.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Luísa


Ganhei meu dia com a notícia de que Luísa Erundina conseguiu os recursos para pagar sua “condenação”.
Fiquei feliz como se a ré fosse uma de minhas irmãs que tivesse recuperado a possibilidade de sorrir com alguma tranquilidade.

Lembrei-me dos olhos claros e límpidos de uma Erundina sem óculos, assinando uma ficha na recepção do Hotel Nacional, em Brasília, única ocasião em que conversei com ela. Conversei, não: tietei descaradamente. Só não tive coragem de pedir autógrafo, porque acho bem cafona — mas que fiquei sépia de vontade de pedir, isso fiquei.

No fundo, seria um autógrafo redundante, pois a marca de determinadas pessoas se engasta na alma da gente como pedra preciosa e ali fica pra sempre, quieta, em calmaria de brilho. Que força mantém esse brilho eu não sei definir. No caso de Luísa, muito provavelmente a enérgica integridade. E o mais surpreendente — se não fosse trágico — é que a cada injustiça de que essas pessoas são vítimas acrescenta-se mais uma faceta ao diamante que as sintetiza. Impossível não lembrar de Luísa, do Tom Jobim:
“Como um brilhante que partindo a luz / Explode em sete cores/ Revelando então os sete mil amores... “
Impossível também não imaginar — sem o menor fundamento que não o do desejo intenso — que Milton Nascimento pudesse ter pensado nela ao compor Maria, Maria. Não importa que isso não seja verdade, mas uma verdade pode ser uma possibilidade que se esqueceu de acontecer, mal plagiando Mário Quintana.
Impossível ainda não estabelecer confrontos, contrastes, realçar antíteses.

De um lado, um caco de vidro de frouxo e nefasto brilho, que precisa de uma tela de televisão para veicular ao infinito os estilhaços de suas palavras fétidas, como o Sr. Boris, aquele que joga bosta no gari. De outro, um ser humano de primeiríssima linha, que não precisa de nenhum suporte para brilhar, porque é diamante, brilha por si, mesmo que permaneça calado, no seu canto que nem sempre é um canto audível, já que virou mantra de quem carrega o peso de injustiças desconcertadas e sem conserto.

Luísa, um abraço e um diamante imaginário — mas com sete mil cores — pra você.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

De tudo fica um pouco?

Leio agora, no meio da minha insônia, no portal Terra:
“Coronel que comandou invasão da PUC na ditadura militar morre aos 85”.

Não posso deixar de pensar: tantas outras coisas terá feito esse homem... terá feito filhos, terá tido netos, terá plantado uma jabuticabeira, terá dado uma ajuda financeira a um primo distante, terá, quem sabe, evitado a morte de um cachorro. Terá até justificado, intimamente, atitudes truculentas em nome de uma ideologia que, por alguma razão, abraçava com convicção.

Ao morrer, no entanto, o que ficou foi apenas e tão-somente o fato de ter comandado a invasão à reitoria de uma universidade. Simplesmente isso.

Não morreu o pai de fulano e fulana; o avô de fulano e fulana; o homem que plantou aquela jabuticabeira ali; o primo que ajudou outro primo em dificuldade. Tudo isso desapareceu e ficou do homem apenas o título de coronel e sua “façanha” maior: invadir uma universidade em nome de um governo ditatorial.

Não, eu não lembro como foi o Natal daquele ano de 1977. Eu não me lembro de quem desejou feliz ano novo a quem. Provavelmente houve um hiato na eterna luta ideológica, provavelmente não cristãos desejaram feliz Natal a cristãos e vice-versa. Provavelmente foi o mesmo clima de final de ano de sempre: os espíritos mais radicais se flexibilizam e tendem a se deixar levar -- ainda que por um minuto – pela noção racionalmente estruturada ou meramente intuída de solidariedade, respeito, honra, ética.

E, sobretudo, pela alegria.

A alegria meio irresponsável que permite sair mais cedo do trabalho, que permite beber e comer um pouco mais, que permite dar uma piscadela pra vida como que dizendo “ei, vida, estou te levando na boa”.

Mesmo para quem carrega uma cruz mais pesada, é comum que essa vibração leve a repousar por alguns minutos o instrumento de trabalho e a cantar, a desejar felicidade ao próximo, a repetir um ritual de todo fundamental, pois necessitamos de algum luxo e esse luxo pode ser apenas uma cor ou uma nota, como já disse alguém.

Foi assim em 1977, ano em que o Coronel Erasmo Dias comandou a invasão à PUC, e foi assim também neste final de 2009. Para quase todo mundo, inclusive alguns garis que desejaram, pela televisão, um ano feliz para todos.

Eu me lembro da invasão da PUC. Eu me lembro do coronel Erasmo Dias. O tempo desbastou a imagem dele, reduzindo-a apenas a um invasor de universidades. Foi assim que a história o marcou.

Talvez eu não esteja aqui para lembrar, mas tenho certeza de que a morte do cidadão Bóris Casoy será noticiada como a de um ser cuja dignidade desmoronou de todo ao tripudiar sobre aqueles trabalhadores que ousaram desejar feliz ano novo ao público e mereceram jornalista Bóris Casoy este brinde de final de ano:
“-- Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala de trabalho!"

Mais do que as acusações de pertencer ao CCC, mais do que sua nítida vocação para a subserviência ao poder, mais do que seus olhinhos espertos de ratazana, a lembrança que ficará da existência inteira do sr. Casoy será, certamente, a do episódio dos garis.

E será uma lembrança que para sempre cheirará à mesma merda com que ele não hesitou em rotular a alegria legítima e a solidariedade espontânea do outro.

Que merda, não?