segunda-feira, 21 de abril de 2008

Tirado do baú...


Vazias, dispostas sobre a mesa, as canecas traziam lembranças do tempo em que cada uma tinha um dono.
A bege do filho, a cinza da filha mais velha, a verde do enteado...
Ele tinha escolhido para si a amarela, porque disfarçava o conteúdo habitual: chá. Odiava chá, mas toda noite enfiava a bebida goela abaixo, para cumprir o ritual familiar. (Sempre sonhara em ter uma família perfeita).
A da mulher era a laranja, mesma cor da camisola que viu jogada num canto ao abrir a porta do quarto e deparar com a ela nuazinha na cama com o enteado, numa tarde qualquer em que tinha voltado para casa mais cedo.
Eles tinham ido embora, mas as canecas estavam impregnadas de passado. Encheu a sua de pinga e tomou num só gole, para afastar as cores. Um arco-íris borrado foi a última coisa que viu antes de se debruçar sobre a mesa e chorar.

domingo, 20 de abril de 2008

Dobras duras


O roupão de seda caiu e a mulher exibiu uma nudez perfeita e estática, encimada por olhos fixos que pareciam ver através das coisas.
Quando a apreendeu em sua plenitude, lembrou-se das formas comuns da mulher que estava em casa e teve uma certeza: jamais conseguiria gozar com uma estátua.
Pagou o combinado e saiu.
Naquele dia ele chegou em casa bem diferente “do seu jeito de sempre chegar”.

sábado, 19 de abril de 2008

Merda? Uma questão de perspectiva, ora!


Quando levantaram a tampa do bueiro, os pais da pátria explodiram como pus, gangrena inesperada.


Quando levantaram a tampa do bueiro, percebeu-se que debaixo dela havia retalhos de uma pátria que era a minha, a sua, a nossa, mapeada, vendida, maltratada.


Quando levantaram a tampa do bueiro, soube-se das mãos assassinas que, em nome do poder pelo poder, derrubaram tetos sonhados, esvaziaram pratos prometidos, escureceram luzes pré-festejadas.


Quando levantaram a tampa do bueiro, estarrecida, a ética se dissolveu como cera quente, escorrendo entre as coxas abertas dos vendilhões, que ampliaram para o país a escrotidão dos bordéis em que nasceram.


Quando levantaram a tampa do bueiro, notou-se, no entanto e surpreendentemente, que a merda cagada pelo povo da nação era melhor do que a soma do cérebro, do coração e da alma dos mandantes todos.
E o povo teve certeza de que seus cus valiam mais que a cabeça, as mãos e a as almas dos escrotos mandantes da pátria.
O Diabo sorriu e, mais uma vez, desafiou o Criador.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Entreato....


Todos os dias ela pedia:
– Dorival, por favor, querido, não deixe o xampu aberto!
Todos os dias ele nem ligava.
Uma manhã, exausta, ela teve uma crise de choro e ficou olhando para o vidro de xampu, mais uma vez aberto sobre a pia.
Viu-se refletida na tampa do vidro. Achou-se ridícula chorando em dourado.
Aproveitou o resto do xampu, lavou o rosto, ligou o computador e, por vingança, entrou num chat de encontros amorosos. Arrumou um amante virtual que já no segundo encontro a chamava de “minha neguinha”.
Já não implicava mais com vidro de xampu. Esperava o marido sair e entrava no bate-papo, já amadurecendo a concretização da traição virtual.
Um mês depois, ela confessou: – Amílcar, estou apaixonada por você, mas odeio que me chamem de “neguinha”.
Ele ativou o caps-lock e escreveu: “VOCÊ DEVE SER O TIPO DE MULHER QUE IMPLICA COM VIDRO DE XAMPU ABERTO. TÔ FORA, NEGUINHA”.
Saiu da sala virtual e nunca mais ela o encontrou.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A respeito de algemas...

Todos os braços algemados são tolhidos do abraço.



Todas as mãos dos braços algemados estão impedidas de passear pelo perfil do outro.



Todo tronco que sustenta braços algemados em cujos ápice estão as mãos algemadas está impossibilitado de dançar.



Toda cabeça que encima um tronco que sustenta braços de cujos punhos saem mãos algemadas só consegue equacionar o mundo na perspectiva estúpida de uma galinha prestes a virar almoço de domingo.



Todos os olhos de quem tem a cabeça que encima o tronco que sustenta baços cujos punhos terminam em mãos algemadas acabam ficando cegos para a beleza.



Toda algema transforma o amor em um pássaro a parir cinzas.



Todas as algemas sociais são mais ridículas que as de ferro. No entanto, o algemado só existe porque tem aqueles que martelam, moldam, soldam o ferro para construir as algemas sociais .



São insetos rodando em torno da luz escassa da pequenez de um quarto cheirando a mofo.

Se Deus quis homens que constroem algemas sociais, que seja apenas deus. E que seja algemado, para nunca mais criar nada.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Questão de tamanho


Há pessoas pequenas assim.
Geralmente viram políticos.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Em nome do rei...


(fuçando velhos escritos, achei este)
Em nome do rei, ficam todos convocados a ajudar na construção de um vasto toldo colorido para abrigar nossos sonhos, esperanças e perdões.

Não é necessário título de doutor ou habilidades específicas.

Apenas um coração despido de preconceitos, isento das maldades maiores – pois as pequenas, quem há de não as ter? –, com a rubrica da fé, o pulsar da expectativa, o ritmo do canto futuro.


Nada mais se exige além desse coração e de uma imensa boa vontade para engolir as tempestades, afastar as pedras do caminho e estender as mãos – sim, ambas – quando for preciso.

Em nome do rei, ficam convocados todos os de boa vontade.

segunda-feira, 7 de abril de 2008


Uma ex-assistente de Xuxa virou estrela pornô.
E haja falação em cima disso... Por isso eu digo sempre que felação é mito melhor que falação, apesar da diferença sonora tão pequena.
Pois é... A notícia, que aparentemente é objetiva, condena nas entrelinhas a moça, como se ela devesse ficar a vida inteira retardada e fazendo bilu-bilu pros meninos que viam o programa da Xuxa e hoje estão com a libido a 200 por hora.
Sinceramente, acho bem mais saudável a moça virar objeto de centenas de milhares de punhetas a virar um símbolo raquítico do tatibitate infanto-juvenil da formosa (quem há de negar?) Xuxa.
Então, ex-garotos que assistiam à Xuxa, rumo ao banheiro ou outro lugar recôndito que lhes convier, porque um dos encantos da coisa é estar "no recôndito". E viva o amadurecimento da xuxete e a adolescência e o sexo e tudo que possa representar o mínimo de libertação do provincianismo, do atraso, do mau gosto...
Apesar dos pesares, a vida é bela, dona Estela.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Ponteiros...


Tô precisando recuperar o estado de espírito de algum tempo atrás. Alguma leveza, para que eu mesmo não desmorone debaixo do meu peso.

Revi escritos. Achei este. Quem sabe lendo, lendo, lendo o cinza se dissipa. É assim:




Pensou em deixar um bilhete para a amada, que atrasava sempre.


Utilizaria palavras agudas com os ponteiros do relógio que estava usando.


Quando se deu conta, ele percebeu que tinha ficado cinco minutos observando um casal de


pombos brancos namorando à beira-mar.


Escreveu: "Relógios não servem pra nada. Meu coração entende teu ritmo".


Quando ela chegou e leu o bilhete, ele ganhou um beijo com gosto de certeza.